domingo, 20 de janeiro de 2013

Duas Palavras


DUAS PALAVRAS
-Então o lugar é esse... – disse Jonathan Brewster para si mesmo, ignorando por alguns segundos a presença da senhora ao seu lado. – É esplêndido!Andou um pouco para frente, admirando o horizonte em pleno fim de tarde. Constatou do grande portão de ferro que o Campo Megara era realmente o lugar mais deslumbrante que havia encontrado em toda Romênia. 
Embora aquelas terras tivessem sido manipuladas pelo homem moderno, que pavimentou as pequenas estradas e derrubou algumas das árvores seculares para transformar tudo num grande parque natural, a magia de uma época tão antiga quanto o tempo continuava intacta.
A Sra. Holland franziu suas velhas sobrancelhas ao reparar aquele rapaz rosado, de cabelo negro no corte repicado da moda, segurando um bloco de notas e uma caneta fuleira. Era um homem elegante mesmo estando vestido numa camiseta surrada, calça jeans e num tênis que já fora branco um dia. E também fazia o tipo daqueles que sabem muito bem o que querem, mas que falam pouco. Ela queria entender seus propósitos, mas não podia esperar que o rapaz tomasse a iniciativa.

-O senhor é escritor, não é mesmo? – adiantou-se, tocando-lhe os ombros. – Veio buscar apenas inspiração para um de seus livros, ou procurar algo mais objetivo... como a história de uma jovem que morreu aqui no século II, por exemplo? Ouvi alguns comentários de que buscava isso, Sr. Brewster.

-Vejo que a senhora anda bem informada... – respondeu, ainda com o olhar fixo para dentro do Campo.
-Falando em informação, sabe que dia é hoje, Sr. Brewster?

-Ah, sim... é a noite de Walpurgis. Noite em que bruxas e demônios estarão concentrados por aqui. – dizia de si para consigo, buscando na memória coisas que havia lido em suas pesquisas. – Foi nesse dia que Jonathan Harper chegou ao castelo de Drácula, segundo Bran Stocker. Goethe mencionou essa lenda em Fausto também. Fascinante! – disse quase gritando de êxtase.

-Agradeço por ter me trazido até aqui. – falou Jonathan pousando suas mãos nos ombros secos da Sra. Holland. – Não vou encontrar dificuldades para voltar ao hotel, portanto não precisa me esperar. Além do mais, quero ficar sozinho. A senhora sabe... “coisas” de artista. – revelou fazendo aspas com os dedos e com um olhar de “não posso perder mais tempo”.
-Tudo bem, tudo bem... – respondeu a pequena velha, enquanto arrumava seus cabelos grisalhos. – Antes que eu me vá, poderia me emprestar sua caneta e uma folha de seu bloco? Quero pelo menos que tenha o telefone do hotel, caso se perca. Sabe, “coisas” de uma velha mais esperta que você.

Contrariado pelo excesso de cuidados da senhora, ele fez o que ela pediu. Deu mais uma olhadela ao redor admirando tudo, e finalmente sentiu a caneta e a folha serem postas em sua mão novamente.

-Pense bem antes de se meter com aquilo que não conhece. – disse a velha, num tom totalmente diferente do que já lhe havia dirigido.

-Há há há! Acredita mesmo que há uma maldição nessa história, Sra. Holland? Que a tal menina virou um fantasminha camarada? – dizia enquanto afastava-se da velha, enfiando o papel no bolso e seguindo o caminho do Campo.

-Não acredito em fantasmas. – respondeu observando o céu, com as mãos sobrepostas juntas ao peito.

-Acredita no quê então?

-Acredito que a memória dessa infeliz deve ser respeitada. Siga o meu conselho enquanto há tempo de voltar, Sr. Brewster. Esqueça isso!

Jonathan divertia-se do medo que a Sra. Holland partilhava com alguns dos moradores locais. Era impressionante que em pleno século XXI tais crenças permanecessem vivas. Incluir esse pavor em seu próximo livro seria interessante para dar o clima melancólico que precisava. Sim, seria realmente interessante.

Preso em seus pensamentos e envolvendo-se naquela atmosfera sombria, Jonathan caminhou durante muitos minutos. Desejou sentir a grama em seus pés. Retirou seu par de tênis e continuou a caminhar, agora olhando o sol se deitar por entre as árvores do Campo. Estava fascinado pela beleza do lugar.
Todo o livro estava sendo escrito em sua cabeça naquele momento, e sua consciência estava em outro plano por causa disso. Era importante pisar no mesmo solo que a suposta jovem do século II pisou um dia. Tinha transportar essas sensações aos seus leitores de forma verossímil.

Assim, Jonathan peregrinou por muito tempo e só voltou a si quando a luz do dia já estava bem fraca.

Parou de andar e olhou para trás na esperança de ver o portão de entrada do Campo Megara. Deu um salto ao perceber que já estava muito longe da estrada principal. 
Com o coração um pouco acelerado, apressou- se em por seus tênis nos pés. Levantou de novo e pôs-se a caminhar com rapidez pela direção de onde tinha vindo. Mas por onde ele tinha vindo? Estava muito concentrado e deslumbrado para ter notado as coisas ao seu redor.

Jonathan não queria acreditar, mas estava perdido.

Começou a transpirar por nervosismo. A luz do dia ficava cada vez mais escassa e a beleza do lugar começava a se dissipar. Viu pássaros negros voando desordenadamente pelo céu avermelhado, emitindo sons que mais pareciam um lamento. O campo ficava cada vez mais assustador e até mesmo as árvores pareciam fazer isso propositalmente.

Ele imediatamente tirou seu celular do bolso juntamente com o papel que a Sra. Holland havia lhe dado. Abriu o flip do telefone e constatou que não havia cobertura naquele lugar. Transpirando ainda mais, abriu o papel que a velha havia lhe dado. Mas ao invés de números, encontrou a mensagem:

“Aconteça o que acontecer, não olhe para trás!”, em letras de fôrma tremidas.

-Mas que diabos essa velha maluca fez? – falou enquanto virava o papel, incrédulo por não haver números ali.

Foi nesse instante que ele começou a sentir brisas geladas e diferentes, que pareciam ser provocadas por algum animal de grande porte, vindo das sombras das árvores atrás de si.

Ficou parado por alguns instantes na esperança de que o tal animal seguisse adiante, sem notar sua presença. Mas ao invés disso, ouviu o som de pés tocarem o chão. 
As brisas cessaram instantaneamente, e somente passos humanos em sua direção eram divisados agora. Os olhos de Jonathan arregalaram-se, e o calor de seu sangue havia sido roubado pelo medo do desconhecido que enfrentava agora.

“Aconteça o que acontecer, não olhe para trás!”, era o que a Sra. Holland tinha escrito no papel. O quê mais ela queria dizer com isso? De qualquer forma, ela não disse que não se podia correr. E assim ele fez. 

Começou a correr desesperadamente para a direção de onde tinha vindo. Correu o máximo que pôde e quando já estava ficando sem fôlego, finalmente divisou a pequena estrada principal com uma ponta de alívio. 
Um denso nevoeiro foi se formando aos poucos por entre as árvores. Em questão de segundos Jonathan já não podia mais enxergar a estrada principal, mas continuava a correr na direção em que estava, pois não tinha como errar.

Um de seus pés afundou num buraco, fazendo com que perdesse o equilíbrio e tombasse para frente. Rapidamente de joelhos, ele se preparou para voltar a correr. Mas assustou-se ao notar com seu olhar periférico pés muito brancos, femininos, descalços e suspensos no ar bem atrás de si. Mãos geladas pousaram em seus ombros, tomando-lhe o domínio de seu próprio corpo.

 Seu coração pulsava desesperadamente, quase o impedindo de respirar. As mesmas mãos rasgaram sua velha camiseta com facilidade, arranhando suas costas de uma maneira dolorosa.

Sentiu algo quente escorrer por seus músculos, e imaginou que provavelmente estava sangrando. Estava ficando tonto e sabia que iria desfalecer a qualquer momento.

Teve a sensação de que a língua daquela entidade deslizava pela ferida de suas costas, e de alguma forma isso fazia com que não sentisse mais dor, dando-lhe até um certo prazer medonho.

Jonathan perdeu seus sentidos logo em seguida, afundando-se no mundo escuro do sono.


Seus olhos se abriram com os tapinhas que Sra. Holland lhe dava no rosto, reclamando consigo mesma por não ter sido mais enérgica. 
Notou que já estava amanhecendo, e que continuava no Campo Megara, exatamente onde havia desmaiado na noite passada.

-Teve sorte, Sr. Brewster. Teve muita sorte. – disse a velha, enquanto encorajava o jovem escritor a ficar sentado. – Pelo menos me deu ouvidos, embora quase tardiamente.

   -Como assim?

-Leu o que eu havia escrito no papel. Se não tivesse lido, não estaria mais vivo. – enfiou sua mão no bolso da calça do rapaz e retirou a caneta fuleira, erguendo-a na direção dos olhos dele. – Ontem, quando pedi sua caneta emprestada, troquei-a pela minha sem que você percebesse. 

Essa caneta foi me dada por um amigo cigano, que disse que ela me protegeria daqueles que vivem do sangue alheio. Não é uma caneta comum, Sr. Brewster. Ao invés de tinta, possui propriedades que enfeitiçam o sangue, tornando-o uma espécie de repelente para essas entidades malditas. 
Mas o feitiço não funciona se o portador olhar nos olhos da entidade que pretende atacá-lo
.
    -Como sabia que eu estaria aqui? – perguntou, levantando-se com a ajuda da velha.

-Não sabia. Segui minha intuição. – respondeu, olhando admirada para as costas de Jonathan. – Muitas coisas estranhas aconteceram, Sr. Brewster. Muitas coisas. Agora acredita que a memória da infeliz que morreu aqui deve ser respeitada? Percebe que não pode basear seu novo livro na história dela?

-Sim, Sra. Holland. Acredito, embora eu não compreenda metade das coisas que me explicou. – disse enquanto removia partículas de lama de sua calça, franzindo a cara de dor pelo arranhão em suas costas.

-De qualquer forma, Sr. Brewster, acho que alguém queria lhe dar um recado apenas. Um recado que está impresso em suas costas e que você irá carregar para sempre. – revelou com perspicácia.

    -É mesmo? E o que diz? – perguntou, inclinando-se na esperança de poder ler.

-São duas palavras. Duas palavras marcadas com algo bem afiado. “Esqueça Isso”, é o que está escrito, Sr. Brewster.